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4 de janeiro de 2014

Vária - contos, narrativas & outros textos - I

O Menino




Na guerra - uma qualquer guerra - perdera os pais, a morada, o nome e a idade. Era apenas o Menino. Poucos o conheciam. Uns por ignorância, outros por desprezo. Sobrevivia do que recolhia no cisco do lixo e dormia, quando podia, sob as estrelas. Não tinha passado e o futuro não se entrevia.

Naquela noite resolveu dirigir-se à parte rica da cidade, porque a fome apertava em demasia. Sabia correr o risco de ser enxotado por qualquer Guardião da Aparência, os que não toleravam meninos de rua. De qualquer rua.

Era quase amanhã, a melhor hora para deambular livremente, sem ser importunado. Nas ruas, fantásticas áleas de luzes multicores ladeavam o caminho da felicidade anunciada. Contrariamente a outras noites, todas as montras estavam iluminadas, mostrando a beleza da superficialidade.

A medo, o menino aproximou-se de uma montra, qual palco de vaidades. Deslumbrado, olhou para tudo com olhos ávidos e, a princípio, a sua visão desacostumada não soube esmiuçar o que via. Foi necessário algum tempo para que a amálgama de brilhos e cores começasse a ganhar formas concretas.

Tudo o que o seu pequeno mundo lhe mostrara e tudo o que desconhecia estava ali, em miniatura. Carros de formas e marcas variadas: automóveis belíssimos, camiões, tractores, maximbombos e motos. Pistas de automóveis e de comboios. Bonecos e bonecas. Piões eléctricos, raquetes, bolas para todos os desportos. Formas inimagináveis de seres alienígenas, numa secção particularizada, não despertaram no Menino particular atenção. Depois era a secção de livros, jogos e quebra-cabeças, contando estórias que nunca ninguém lhe contara. Pistolas, espingardas e metralhadoras. Muitas pistolas, espingardas e metralhadoras, tanques de guerra e soldados em miniatura. Sentiu um arrepio e desviou o olhar. Ao fundo, para lá da montra, eram triciclos e bicicletas, irradiando cores metálicas e, mais ao lado, um palanque mostrava o último grito da moda em informática, que nada lhe dizia.

Passou o olhar para a montra seguinte. Bolos-reis e inúmeros outros doces, nozes, pinhões, amêndoas, avelãs, uvas-passas, muitos frutos secos cobertos de diamantino açúcar, rebuçados, caramelos e bombons. O Menino, despreocupado, foi encostando o rosto à vidraça. Os seus olhos eram dois cristais límpidos, brilhantes e alvoroçados. O rosto magro abriu-se num sorriso largo, tão largo que ofuscou as luzes da rua toda. Encostou as mãos espalmadas ao vidro da montra, querendo agarrar aquela visão.

Subitamente sentiu-se arrastado, arrancado à força, extorquido àquele mundo de sonho. Uma mão sapuda manietava-o fortemente.

- O que é que fazes por aqui, a estas horas?

- Nada, sô guarda, estava só olhar!

- Pois... e eu sou o Pai Natal! Onde anda o teu grupo?

- Grupo de quê sô guarda?

- Grupo de quê... o grupo da roubalheira!

- Não sei, não... eu não tenho grupo nenhum.

- Ai não, então vamos para a esquadra para veres como elas te doem!

Chegados à esquadra o Menino foi brutamente arremessado para um banco-corrido, em corredor gélido, atónito e sem entender que mal fizera. Dos lados esconsos da esquadra vinha o som de um entrechocar de pratos, copos e talheres, sob um fundo de alegre algazarra.

- O teu nome?

- Não tenho.

- Ora essa, não tens nome? E o teu pai?

- Não tenho pai!

- A tua mãe?

- Não tenho mãe!

- Caramba, tu não tens ninguém? - agastou-se o guarda.

- O que é que se passa aqui? - indagou o chefe da esquadra, surgido da banda do entrechocar de pratos, copos e talheres. O guarda tentou explicar-se:

- É este puto que estava a rondar as montras da baixa, certamente a preparar o campo para a quadrilha...

- És a mesma besta todos os dias! - interrompeu-o o chefe - Põe o miúdo na rua e rasga-me essa papelada. Que bela ideia! Prender um vadio na Noite de Consoada!

Mal se apanhou fora da esquadra, o Menino correu, correu, correu... até não aguentar. Sentou-se no chão, esbaforido. Olhou à sua volta e só encontrou a noite, escura como o seu coração. Estava fora da cidade, não sabia onde. Arrastou-se até uma árvore, encostou a cabeça ao tronco e sentiu duas grossas lágrimas correrem pelo rosto ossudo. Muito ao longe, as luzes da cidade eram pirilampos sumidos na escuridão.

Quando o frio já lhe regelava os ossos, lembrou-se que talvez encontrasse, por ali, alguma estrebaria. Andou quase um quilómetro, sentindo a humidade do solo como lâminas nos pés descalços. Encontrou uma casa de lavoura e tacteou paredes até encontrar o que procurava.

Na casa, a mãe, o pai e sete filhos refastelavam-se à volta de uma mesa alegremente algaraviada e supimpamente guarnecida. A mulher pressentiu qualquer barulho no exterior e saiu. Regressou instantes depois, excitada e com o rosto afogueado:

- Venham ver... depressa... parece um milagre!

Todos se quedaram, estupefactos, à entrada da estrebaria. A um canto, no meio da palha, o Menino dormia enroscado entre a vaca e o jumento.

- Não parece mesmo o Menino Jesus? - indagou a mulher, perguntando-se.

Os outros, boquiabertos, acenavam afirmativamente com a cabeça ainda estonteada.

Só não viram as lágrimas, nem escutaram o batucar tiritante do coração do Menino.



Admário Costa Lindo
Sanzalangola.com | 22.12.2005


notas:
batucar. Bater a compasso.
maximbombo. Autocarro de transportes públicos.

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