O Menino
Na guerra - uma qualquer guerra - perdera os pais,
a morada, o nome e a idade. Era apenas o Menino. Poucos o conheciam. Uns por
ignorância, outros por desprezo. Sobrevivia do que recolhia no cisco do lixo e
dormia, quando podia, sob as estrelas. Não tinha passado e o futuro não se
entrevia.
Naquela noite resolveu dirigir-se à parte rica da
cidade, porque a fome apertava em demasia. Sabia correr o risco de ser enxotado
por qualquer Guardião da Aparência, os que não toleravam meninos de rua. De
qualquer rua.
Era quase amanhã, a melhor hora para deambular
livremente, sem ser importunado. Nas ruas, fantásticas áleas de luzes
multicores ladeavam o caminho da felicidade anunciada. Contrariamente a outras
noites, todas as montras estavam iluminadas, mostrando a beleza da
superficialidade.
A medo, o menino aproximou-se de uma montra, qual
palco de vaidades. Deslumbrado, olhou para tudo com olhos ávidos e, a
princípio, a sua visão desacostumada não soube esmiuçar o que via. Foi
necessário algum tempo para que a amálgama de brilhos e cores começasse a
ganhar formas concretas.
Tudo o que o seu pequeno mundo lhe mostrara e tudo
o que desconhecia estava ali, em miniatura. Carros de formas e marcas variadas:
automóveis belíssimos, camiões, tractores, maximbombos e motos. Pistas de
automóveis e de comboios. Bonecos e bonecas. Piões eléctricos, raquetes, bolas
para todos os desportos. Formas inimagináveis de seres alienígenas, numa secção
particularizada, não despertaram no Menino particular atenção. Depois era a
secção de livros, jogos e quebra-cabeças, contando estórias que nunca ninguém
lhe contara. Pistolas, espingardas e metralhadoras. Muitas pistolas,
espingardas e metralhadoras, tanques de guerra e soldados em miniatura. Sentiu
um arrepio e desviou o olhar. Ao fundo, para lá da montra, eram triciclos e
bicicletas, irradiando cores metálicas e, mais ao lado, um palanque mostrava o
último grito da moda em informática, que nada lhe dizia.
Passou o olhar para a montra seguinte. Bolos-reis e
inúmeros outros doces, nozes, pinhões, amêndoas, avelãs, uvas-passas, muitos
frutos secos cobertos de diamantino açúcar, rebuçados, caramelos e bombons. O
Menino, despreocupado, foi encostando o rosto à vidraça. Os seus olhos eram
dois cristais límpidos, brilhantes e alvoroçados. O rosto magro abriu-se num
sorriso largo, tão largo que ofuscou as luzes da rua toda. Encostou as mãos
espalmadas ao vidro da montra, querendo agarrar aquela visão.
Subitamente sentiu-se arrastado, arrancado à força,
extorquido àquele mundo de sonho. Uma mão sapuda manietava-o fortemente.
- O que é que fazes por aqui, a estas horas?
- Nada, sô guarda, estava só olhar!
- Pois... e eu sou o Pai Natal! Onde anda o teu
grupo?
- Grupo de quê sô guarda?
- Grupo de quê... o grupo da roubalheira!
- Não sei, não... eu não tenho grupo nenhum.
- Ai não, então vamos para a esquadra para veres
como elas te doem!
Chegados à esquadra o Menino foi brutamente
arremessado para um banco-corrido, em corredor gélido, atónito e sem entender
que mal fizera. Dos lados esconsos da esquadra vinha o som de um entrechocar de
pratos, copos e talheres, sob um fundo de alegre algazarra.
- O teu nome?
- Não tenho.
- Ora essa, não tens nome? E o teu pai?
- Não tenho pai!
- A tua mãe?
- Não tenho mãe!
- Caramba, tu não tens ninguém? - agastou-se o
guarda.
- O que é que se passa aqui? - indagou o chefe da
esquadra, surgido da banda do entrechocar de pratos, copos e talheres. O guarda
tentou explicar-se:
- É este puto que estava a rondar as montras da
baixa, certamente a preparar o campo para a quadrilha...
- És a mesma besta todos os dias! - interrompeu-o o
chefe - Põe o miúdo na rua e rasga-me essa papelada. Que bela ideia! Prender um
vadio na Noite de Consoada!
Mal se apanhou fora da esquadra, o Menino correu,
correu, correu... até não aguentar. Sentou-se no chão, esbaforido. Olhou à sua
volta e só encontrou a noite, escura como o seu coração. Estava fora da cidade,
não sabia onde. Arrastou-se até uma árvore, encostou a cabeça ao tronco e
sentiu duas grossas lágrimas correrem pelo rosto ossudo. Muito ao longe, as
luzes da cidade eram pirilampos sumidos na escuridão.
Quando o frio já lhe regelava os ossos, lembrou-se
que talvez encontrasse, por ali, alguma estrebaria. Andou quase um quilómetro,
sentindo a humidade do solo como lâminas nos pés descalços. Encontrou uma casa
de lavoura e tacteou paredes até encontrar o que procurava.
Na casa, a mãe, o pai e sete filhos refastelavam-se
à volta de uma mesa alegremente algaraviada e supimpamente guarnecida. A mulher
pressentiu qualquer barulho no exterior e saiu. Regressou instantes depois,
excitada e com o rosto afogueado:
- Venham ver... depressa... parece um milagre!
Todos se quedaram, estupefactos, à entrada da
estrebaria. A um canto, no meio da palha, o Menino dormia enroscado entre a
vaca e o jumento.
- Não parece mesmo o Menino Jesus? - indagou a
mulher, perguntando-se.
Os outros, boquiabertos, acenavam afirmativamente
com a cabeça ainda estonteada.
Só não viram as lágrimas, nem escutaram o batucar
tiritante do coração do Menino.
Admário Costa Lindo
Sanzalangola.com | 22.12.2005
notas:
batucar. Bater a compasso.
maximbombo. Autocarro de
transportes públicos.
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